quinta-feira, 30 de abril de 2009

… encontram-se muitas vezes as mesmas pessoas (3)

Já o tinha encontrado pela altura do Natal, época em que a sua entrada nem seria de estranhar, não fosse o seu fato de Pai Natal ser azul-bebé em vez de vermelho.
Hoje voltou a entrar no meu bus, com o mesmo fato, as mesmas barbas brancas e com uma pasta tipo-executivo pejada de autocolantes. Consegui ler um “Só há rapaz se a mulher o quiser”, qualquer coisa que começava com “Arrependimento”, várias imagens de santos e pequenas quadras. Sentou-se perto do motorista e iniciou um interessantíssimo monólogo sobre a comparticipação de dentaduras: “Pago ao Estado. Pago ao Estado pelos dentes de uma criança. A mãe que quer uma dentadura nova só tem de engravidar e tem os dentes de graça. A seguir aborta mas já não importa.” O tema saltou para o dinheiro (“a matéria-prima do Homem” como lhe chamou) e para a dificuldade que um homem tem em o esconder das mulheres: “Não o pode guardar na cama porque a mulher faz sexo todos os dias. Mesmo que esteja grávida.”
E depois saiu de rompante pela porta da frente.
O motorista pareceu aliviado, mas a viagem perdeu parte do seu encanto.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

… sabe-se que o banco de trás não é grande coisa

O último banco tem quatro lugares. Três deles são maus e um é aceitável.
Os dois da direita, por estarem localizados por cima de uma das gigantescas rodas do autocarro, implicam que se pouse os pés a um nível mais elevado. Ora pernas encolhidas = desconforto. A acrescentar a isto, é praticamente impossível sair-se do lugar encostado à janela, pelo menos sem incomodar os dois passageiros do lado.
Depois há o terceiro lugar a contar da direita. Fica mesmo alinhadinho com o corredor central, o que é excelente para se rebolar por ali fora caso o bus resolva travar de forma mais afincada. As vistas não são grande coisa: à direita um par de passageiros, à esquerda um passageiro e alguma distância para a janela e, em frente, ou mais passageiros ou o tal corredor vaziamente assustador.
Finalmente chegamos ao lugar aceitável. Fica do lado esquerdo mesmo junto a um depósito cuja utilidade desconheço. Para além de se conseguir ter os pés a um nível normal, ser relativamente fácil sair-se e ter-se a protecção do banco da frente contra travagens, o lugar presenteia-nos com um apoio para o braço direito. Ou para pousar o saco da ginástica. Para conseguir ultrapassar a sua condição de aceitável só lhe falta mesmo uma melhor suspensão. É que quando se anda de autocarro sabe-se que no banco de trás qualquer buraco ou lomba na rua não passa despercebido.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

… espera-se numa fila

E não se pense que esta é uma tarefa fácil.
Antigamente as filas faziam-se na direcção da porta de saída. Mais recentemente, e muito bem, alterou-se a direcção da fila de forma a não complicar a saída dos passageiros. Na altura da mudança, desenharam-se pés coloridos no chão para facilitar a transição. Entretanto os pés apagaram-se e as filas ficaram confusas. Há quem tenha adoptado a nova metodologia e se organize na direcção certa. Há quem mantenha a anterior estratégia, ou porque não se apercebeu da alteração ou porque está demasiado preso a tradições para ceder a tal ideia-mirabolante. Depois há os que chegam à paragem e, perante o cenário de filas que se formam em sentidos opostos, opte por se manter à distância e só avançar quando a porta de entrada se abre. O resultado nunca é bom, está claro, principalmente quando já se acumulou um número simpático de passageiros ansiosos por apanhar um dos poucos lugares sentados. Há sempre empurrões e antipatia e queixumes e eu estava primeiro e etc.
Não estou à espera que uma nova campanha de sensibilização para a formação-de-filas-de-espera-de-autocarros avance, até porque as pessoas não deixam de entrar por causa da confusão. Resta-nos esperar para ver quem vence: a-super-fila-super-tradição ou a neo-fila-menos-confusão.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

… sabe-se que a campainha é importante

No metro não há campainhas. As carruagens param em todas as estações e em todas as estações as portas abrem para deixar entrar e sair os passageiros. É desta forma, e também por não haver o factor trânsito, que o metro consegue cumprir os horários.
Ora no autocarro as coisas não são tão simples. O cumprimento dos horários está intimamente ligado à perícia do motorista em ir compensando acelerações na faixa do BUS com semáforos vermelhos e carros mal parados. É por isso que, no bus, as campainhas têm uma função tão importante: alertar o motorista para a necessidade ou não de parar na próxima paragem. É que quando se dá a combinação ninguém-premiu-a-campainha/ninguém-na-paragem-quer-entrar, o bus não pára e ganham-se preciosos minutos. As campainhas não são bonitas, têm um som desagradável e estão sujas, mas nada disso lhes tira o protagonismo.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

… passa-se muitas vezes pelos mesmos sítios (2)

As minhas viagens de autocarro começaram no ano em que o Jacarandá do Largo do Virato morreu.
Em Abril de 2008, quando ainda não tinha folhas, pensei: fixe, vou assistir às etapas todas. Primeiro o castanho. Depois, por algumas semanas, o roxo. O verde também é bonito e mantém-se por longos meses. O problema é que os meses passaram e o castanho prevaleceu. A esperança de ver o roxo encolheu quando prenderam a árvore com uns cabos. Já mais para o final do ano, depois de mais de cem anos, a árvore deixou de estar lá. O Largo do Viriato ficou pequeno.
Achei simpático que plantassem rapidamente um novo jacarandá. Falta-lhe o tronco grosso. Faltam-lhe os 16,9 metros de altura. Falta-lhe a beleza. Faltam-lhe as qualidades para ser classificada como “árvore de Interesse Público”. Mas pelo menos a sequência castanho – roxo – verde vai continuar a preencher aquele trajecto.

(obrigada à minha mãe por me ter dado a conhecer o Jacarandá quando ainda era pequenina e, assim, ter podido assistir a muito arroxeares ao longo dos anos)

terça-feira, 21 de abril de 2009

… encontram-se muitas vezes as mesmas pessoas (2)

Cheguei a pensar que se conheciam. Sempre um ao lado do outro nos penúltimos lugares do lado direito. Devem andar ambos pelos cinquenta. É obvio que o que está à janela entra primeiro do que o outro. De outra forma o ritual um-levanta-se/o-outro-sai/o-primeiro-volta-a-sentar-se não se repetiria diariamente quando estamos a chegar ao Hospital de S. João. E nem é nessa paragem que sai, mas gosta de garantir que está perto da porta quando tiver que o fazer. Nunca os vi a falar. Nem mesmo quando chega a altura do ritual. Basta um olhar e pronto um-levanta-se/o-outro-sai/o-primeiro-volta-a-sentar-se.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

… tenta ser-se simpático

Autocarro cheio. Pessoas de pé em todo o corredor. Um lugar vazio. Está meio escondido. Quase ninguém o vê. Mas ela sim. Mas lá não lhe apetece sentar. Olha à volta e escolhe a senhora com mais idade:
- Não se quer sentar?
- Obrigada. Não posso ir de costas.
- E a senhora, não se quer sentar?
- Não, não. Saio na próxima.
- O senhor...?
- Ó jovem, ainda tenho boas pernas para ir de pé!
Senta-se ela.
O autocarro pára e o rapaz que está ao lado levanta-se e sai.
Juro.

terça-feira, 14 de abril de 2009

… não se anda de metro

Antes das viagens no meu bus andava de metro. O metro é pontual. O autocarro nem sempre. Há um metro a cada 5 minutos. De vez em quando falha um autocarro e os 10 minutos de espera convertem-se em 20. O metro é espaçoso. No autocarro não se conseguem evitar os choques com outros passageiros quando se passa no corredor. No metro não há trânsito. No bus sim. O metro tem 80 lugares sentados (ou 160 no caso das carruagens duplas). O autocarro fica-se pelos 34. No metro há carruagens que têm televisão. No autocarro, quando muito, há motoristas que levam um rádio portátil. O metro move-se a electricidade. O autocarro a gasóleo ou a gás natural. No metro não é preciso avisar que se quer sair. No autocarro tem de se estar atento. Passe mensal para o metro = €23,45. Passe mensal para o autocarro = €23,45. Para mim, o metro implica uma viagem de carro até à paragem. O autocarro não. Carro + metro = 30 minutos. Caminhada + autocarro = 30 minutos. No carro apanha-se trânsito e fica-se mal disposto. Andar a pé quase sempre é agradável. E é por isso que a minha dimensão preferida não é o metro. É o bus.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

… ouvem-se lá, lá, lás

Alguém me explique, por favor, o que é que pode levar uma pessoa a cantarolar alto e bom som no meio de uma viagem de autocarro. É que foi mesmo isso que aconteceu. Autocarro cheio. Poucas conversas no ar. Lá, lá, lá, láaa, lá, lá. Quem foi?! Não percebo. A viagem continua. O autocarro já está mais vazio. Lá, lá, lá, láaa, lá, lá. Eh pá! Isto aconteceu mesmo! Olho em redor e vejo uma rapariga a tentar controlar o riso. A que canta está sentada ao lado dela. Sexagenária, cabelo cortado à lá Maria da Música no Coração e um lá, lá, lá, láaa, lá, lá a sair-lhe da boca. Lanço um sorriso cúmplice à rapariga e prosseguimos viagem. Lá, lá, lá, láaa, lá, lá.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

… encontram-se muitas vezes as mesmas pessoas (1)

Foi nele que reparei primeiro. A combinação vinte-e-poucos/fato-e-gravata/cabelo-puxado-para-a-frente/sapatos-envernizados-e-com-berloques/óculos-de-sol-vermelhos foi infalível para que reparasse nele. Senta-se sempre no lugar individual atrás do condutor e ouve música. Uma vez consegui identificar os Cold Play. Sempre achei que os Vampire Weekend eram mais adequados ao seu estilo freak-queque. Ao telemóvel diz coisas como: “a mãe já foi buscar o fato? Eu passo por lá.” Deve ser rico. Entra antes de mim e que sai na zona da Cordoaria. Deve andar em Direito. Só isso poderá justificar a combinação vinte-e-poucos/fato-e-gravata/sapatos-envernizados-e-com-berloques. Se calhar vai acabar por esquecer o cabelo-puxado-para-a-frente/óculos-de-sol-vermelhos. Assim como os Cold Play.

terça-feira, 7 de abril de 2009

… tem que se avisar que se quer sair

Quando tocar à campainha e accionar o placar “PARAR” não chega, aplicam-se técnicas alternativas:
- Ó Sr. Motorista, abra a porta!
- Hei! Então não ouviu a campainha!
- Sr. Motorista: aguarde um jeitinho, por favor! (sim, esta também resulta)
- Olhe a porta, homem!
- Está distraído. A porta!
- Por favor, avise aí o motorista para abrir a porta.
Nunca ninguém deixou de sair do meu bus, mas sem dúvida que uma boa colocação de voz e a utilização do “Sr.” são essenciais para que a operação seja bem sucedida.
Também há sempre a alternativa de se posicionar junto à porta da frente e esboçar um “deixa-me sair por aqui, por favor, sr. motorista, obrigado”. É infalível. Mas o segredo mesmo é ter que sair em paragens onde sai mais gente. É que, mesmo que a campainha/sinal luminoso não funcionem, quase sempre há alguém que toma a iniciativa de resolver a questão. E o problema de adequar o tom de voz e empregar um “Sr.”, mesmo quanto o motorista não o merece, fica resolvido.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

… corre-se

Ali vem ele. Corro ou não corro? Valerá a pena? Hum… está bastante gente na paragem. Pode ser que dê tempo. Vai dar tempo. Estou quas… Olha, olha, fechou a porta. Tum! Tum! Tum! Já lá vai. E ninguém diz nada!!! Que simpatia!

sexta-feira, 3 de abril de 2009

… passa-se muitas vezes pelos mesmos sítios (1)

A dona entretém-se com limpezas. Às cinco da tarde, pelo menos, é isso que faz. Esfregona para um lado e para o outro. Também já vi um pano do pó. O que nunca vi foi um cliente. Vende artigos para casa-de-banho. Não são as louças. São as saboneteiras com patinhos, os tapetes felpudos e coloridos, as toalhas, os copos dos dentes com líquido azul e estrelas-do-mar, os autocolantes anti-escorregadelas em forma de pé, as balanças transparentes, os cestinhos para os cremes, os suportes para escovas e toda uma miríade de coisas e coisinhas que imagino serem escolhidas a dedo por ela. Cheguei a pensar em sair do bus e comprar um cabide para pôr atrás da porta. Não é que precise, mas não deve ser caro, dá sempre jeito, a senhora dava dois dedos de conversa e sempre tinha a oportunidade de expulsar, nem que por breves instantes, a solidão que também ocupa as prateleiras. O problema é que não o fiz e hoje, à hora de sempre, a porta estava fechada.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

... vê-se o rio

OK, ok, nem todos os autocarros têm esse privilégio. Mas o meu bus permite-me começar o dia com uma espreitadela para o rio. É muito rápida. Tenho que me posicionar bem. O ideal é estar sentada no lado esquerdo, mesmo junto à janela. Hoje estou sentada no lado esquerdo, mesmo junto à janela. Lá vem… Pronto, já vi o rio. O dia vai correr bem. É que não há que enganar. É bom ver o rio quando se vai para o trabalho.